Sabatina na ONU: Alto Comissariado e sociedade civil no Brasil expressam preocupação com a garantia do direito à educação no país; Estado Brasileiro tangencia

Organismo e instituições da sociedade civil, entre elas a Campanha, enviaram relatório à Revisão Periódica Universal com recomendações ao Estado brasileiro; a Revisão acontece hoje, 10h30, no Conselho de Direitos Humanos em Genebra

 

Organismos da ONU (Organização das Nações Unidas) no Brasil “expressam preocupação” sobre como direitos humanos não estão sendo garantidos pelo Governo Bolsonaro. Em relatório do Alto Comissariado da ONU no Brasil, enviado por ocasião da Revisão Periódica Universal do país, aos Estados-membro em Genebra, a palavra “preocupação” aparece 20 vezes no resumo de informações coletadas pelos organismos da ONU e enviadas à Revisão Periódica Universal da organização. O termo “educação” surge 15 vezes no documento. 

A RPU é um processo de avaliação e sabatina do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) em Genebra pelo qual passam os países a cada quatro anos, em monitoramento mútuo da situação dos direitos humanos. A última participação do Brasil tinha sido em 2017. 

Os países-membro da ONU recebem três relatórios: um do Estado brasileiro, um do Alto Comissariado da ONU no Brasil, e outro compilado das submissões da sociedade civil.

O momento de comentários e recomendações dos Estados-membro ao país acontece hoje, no Conselho de Direitos Humanos, em Genebra, às 10h30 horário de Brasília. Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha, e Daniel Cara, professor da FE/USP e dirigente da Campanha, estão lá presencialmente.

Muitos desses registros de receio da ONU no Brasil estão relacionados a omissões e esforços insuficientes relacionados ao direito à vida – escalada da violência nos últimos anos, a militarização das forças de segurança e o descalabro no enfrentamento da pandemia de Covid-19 são alguns exemplos –, e que estão direta ou indiretamente ligados ao direito à educação.

DA SOCIEDADE CIVIL BRASILEIRA PARA A ONU

No relatório da sociedade civil, citando a submissão do Coletivo RPU, cujo capítulo de educação a Campanha coordenou, “educação” é citada 21 vezes, sendo os itens mais relevantes sobre a ameaça que continua vigente acerca da EC 95/2016 do teto de gastos; a lei de cotas; as relações sobre exclusão escolar e trabalho infantil; as ameaças trazida pela tentativa de aprovação do homeschooling no Congresso e a agenda de censura sobre educação sobre gênero nas escolas; a necessidade de regulamentação do Custo Aluno-Qualidade (CAQ), do Sistema Nacional de Educação (SNE), e do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb); e sobre o descumprimento do Plano Nacional de Educação (PNE).

No relatório enviado pelo Estado brasileiro, o Governo Bolsonaro destaca esforços favoráveis à defesa aos direitos humanos que, na prática, não tiveram sua influência ou foram frontalmente ignorados ou enfrentados pelo próprio governo.

A educação é citada 14 vezes no relatório enviado pelo Governo Bolsonaro à ONU. Em muitas aparições, o termo está ligado a ações de alcance reduzido – caso do Programa Forças no Esporte, que atende apenas 30 mil crianças. 

A Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) alerta o Estado brasileiro a cumprir sua legislação nacional “a fim de garantir que as crianças concluam a escolaridade obrigatória”. Em 2019, registra o texto usando dados da PNAD Contínua do IBGE, quase 1,1 milhão de crianças e adolescentes em idade escolar obrigatória estavam fora da escola. “Entre eles, 70,8% eram meninos e meninas negros. A pandemia aumentou a exclusão escolar e, em novembro de 2020, mais de 5 milhões de meninas e meninos não tinham acesso à educação.” 

O Balanço do PNE (Plano Nacional de Educação) 2022, citado no relatório da sociedade civil, corrobora esse diagnóstico. O estudo produzido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação mostra que, em 2021, o acesso de todas as crianças de 6 a 14 anos ao ensino fundamental caiu a um nível menor do que o observado em 2014. “O número de crianças nessa faixa etária que não frequentam nem concluíram a etapa quase dobrou de 2020 para 2021, saltando de 540 mil para 1,072 milhão. Desse 1,072 milhão de crianças, 262 mil sequer frequentavam a escola, e outras 810 mil estavam escolarizadas, mas em etapas anteriores ao ensino fundamental.”

Ao desagregar indicadores de raça/etnia, gênero e região, o Balanço revela que há agravamento de desigualdades em todas as metas do Plano. Um exemplo é a Meta 2 (percentual de estudantes entre 6 e 14 anos que frequenta ou concluiu o Ensino Fundamental). A população preta viu sua taxa de atendimento cair 3,3 p.p. em relação ao que era no início do Plano.

Perspectiva inclusiva
O agravamento no combate ao trabalho escravo e infantil também é apontado por ocorrer devido à redução do orçamento direcionado para essas políticas, com destaque para recomendações anteriores que não foram implementadas. Quem faz a exortação é, novamente o Coletivo RPU Brasil, com o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), a Campanha Nacional de Prevenção e Erradicação, o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH Brasil), a UNISOL – Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários do Brasil e a Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos. 

A Agenda Infâncias e Adolescências Invisibilizadas, coordenada pela Campanha ao lado de diversas entidades, aponta detalhadamente o tamanho do impacto do trabalho infantil – e de outras violações – na exclusão social desses sujeitos de direito. Com sistematização de dados e de legislações, a Agenda faz recomendações como essas ao Poder Público. Acesse os oito cadernos publicados pela iniciativa aqui, que tratam dos seguintes eixos:

- em situação de rua;
- migrantes;
- residentes em territórios urbanos vulneráveis, zonas de conflito e violência;
- no sistema socioeducativo;
- em áreas de reforma agrária;
- em territórios de agricultura familiar;
- comunidades quilombolas;
- e comunidades indígenas.

Inclusão / Ações no STF
A Campanha, ao lado de outras entidades, também teve aprovada no relatório uma submissão expressando que “o decreto que estabelece a Política Nacional de Educação Especial foi um retrocesso nos direitos das pessoas com deficiência, pois estabeleceu um sistema de educação separado para crianças com deficiência”.

A contribuição foi feita com a Terra de Direitos, Conectas Direitos Humanos, Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais (CONAQ), Geledés - Instituto da Mulher Negra, Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e Coletivo RPU Brasil

A Campanha se mobilizou – como parte da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva – recentemente em livro e em audiências públicas pela defesa da educação especial na perspectiva inclusiva, exigindo compromisso público com a priorização de investimentos públicos.

Em agosto de 2021, a Coalizão participou em audiência pública no STF no julgamento da ADI 6.590/DF, que questiona a constitucionalidade do Decreto 10.502/2020, que busca retroceder com a criação de escolas segregadas para crianças e adolescentes com deficiência. Atualmente, os efeitos da nova política estão suspensos, mas sua confirmação ainda está pendente de decisão final da Suprema Corte. Neste momento, a ação aguarda o posicionamento da Procuradoria Geral da República - PGR.

O relatório da sociedade civil à ONU também aponta recomendação para inclusão abrangente de temas relacionados a educação sexual, tolerância e diversidade nos currículos escolares para enfrentar a LGBTfobia na educação. A submissão foi feita pelas organizações Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) e a Associação Nacional de Travestis e Transexuais.

Durante o Governo Bolsonaro, a perspectiva inclusiva da educação foi preterida nessa e em outras frentes – dando lugar a apoios a movimentos pela educação domiciliar e censura nas escolas (Escola Sem Partido).

“A organização internacional Scholars at Risk Network (SAR) denunciou ameaças à liberdade acadêmica e autonomia institucional com pesquisadores enfrentando pressão direta, protestos estudantis enfrentando violência e prisão, bem como o uso do poder executivo para assumir o controle de inúmeras instituições de ensino superior, [além de] ataques diretos ou indiretos à expressão acadêmica e elaboração de legislação de implementação para proteger a liberdade acadêmica”, diz o relatório.

Cotas
A urgência em fortalecer ações afirmativas específicas, como as Leis de cotas raciais na educação básica e superior, e no serviço público, além de ações dessa natureza no setor privado foram incorporadas no relatório. Foram trazidas pela Coalizão Negra por Direitos e a Conectas Direitos Humanos.

A Campanha reconhece em seus estudos o sucesso inegável da Lei de Cotas em incluir as populações negra, de povos originários e de pessoas com deficiência na educação e no serviço público. 

Porém as desigualdades persistem. “Há uma desigualdade gritante de raça/etnia que a gente vê praticamente em todas as metas do [PNE]”, disse Andressa Pellanda no lançamento do Balanço do PNE mais recente.


DOS ORGANISMOS DA ONU PARA O ESTADO BRASILEIRO

Violência nos espaços educacionais
No relatório da ONU, a Unesco também defende que a proteção do estado às crianças e adolescentes deve ser “contra todas as formas de violência” nos espaços educacionais, e recomenda que o Brasil fortaleça suas políticas de proteção considerando especialmente o enfrentamento a violências de gênero, psicológica e sexual nas escolas.

Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, mais da metade (67%) dos casos acontece dentro da casa da vítima e entre pessoas próximas à família. Em muitos casos, é através da escola e de seus profissionais que essas violências deixam de ser invisíveis. 

Migrantes
Com base em informações da UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas), o texto da ONU ainda destaca que o Estado brasileiro “enfrentou desafios em garantir total e adequadamente acesso a emprego, proteção social, educação pública e saúde” a pessoas imigrantes. A ONU registra que Lei 13.445/2017 assegura a migrantes o acesso igualitário e gratuito a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação pública, assistência jurídica pública integral, trabalho, habitação, serviços bancários e previdência social, sem discriminação em razão da nacionalidade e condição migratória.

A cidade de Pacaraima (RR) é símbolo do descaso que os migrantes enfrentam. Cerca de 63% dos estudantes matriculados na rede municipal, na fronteira com a Venezuela, são migrantes. E o Estado não assegura o direito à educação considerando aspectos culturais e linguísticos a essas populações de fronteira e migrantes.

Andressa Pellanda viajou a Pacaraima e participou de encontro formativo com gestores escolares, a convite da Secretaria Municipal de Educação e Cultura.

Gênero e educação domiciliar
A ONU no Brasil também expressa preocupação sobre o estado dos direitos sexuais e reprodutivos no país, listando que “campanhas de desinformação, legislações buscando apontar ‘idades apropriadas’ para educação sexual, e tentativas de enfraquecer programas e entidades governamentais” para a implementação dessas políticas.

A defesa do Governo Bolsonaro a iniciativas discriminatórias e contrárias à perspectiva inclusiva da educação, como nas pautas dos movimentos Escola Sem Partido e da educação domiciliar, são reflexo disso. 

A Campanha se posicionou contrariamente a essas ideias excludentes na educação em audiências públicas e notas técnicas.

Austeridade
A ONU no Brasil afirma que as políticas econômicas e sociais, na perspectiva de austeridade, especificamente sobre o Teto de Gastos, “colocam milhões de pessoas em risco”. Com base nos relatórios do especialista independente da ONU em dívida externa e direitos humanos e da Relatoria Especial em extrema pobreza e direitos humanos, a ONU lembra que a crise ocasionada pela Covid-19 agravou impactos adversos gerados pela “emenda constitucional [EC 95/2016, do Teto de Gastos] que limitou gastos públicos por 20 anos”.

A Coalizão Direitos Valem Mais (DVM), da qual a Campanha faz parte, promove mobilizações e incide politicamente para que o Teto de Gastos seja abolido. Com a colaboração técnica da DVM e outras entidades, a Campanha produziu o estudo “Não é uma crise, é um projeto: os efeitos das Reformas do Estado entre 2016 e 2021 na educação”, mostrando como as medidas de austeridade atacam as bases do funcionalismo público - incluindo da educação pública - e reforçam as desigualdades estruturais brasileiras, situação que se tornou ainda mais grave no contexto de pandemia e pós-pandemia.


DO ESTADO BRASILEIRO PARA A ONU

O relatório enviado pelo Governo Bolsonaro destaca esforços favoráveis à defesa aos direitos humanos que, na prática, não tiveram sua influência ou foram frontalmente ignorados ou enfrentados pelo próprio governo.

A educação é citada 14 vezes no relatório enviado pelo Governo Bolsonaro à ONU. Em muitas aparições, o termo está ligado a ações de alcance reduzido – caso do Programa Forças no Esporte, que atende apenas 30 mil crianças. 

O que os fatos mostram é que a educação teve em 2022, em plena pandemia, o menor orçamento para a educação básica em dez anos.

Reportagem do jornal O Globo mostrou que para o ano que vem, o atual presidente destinou apenas R$ 2,5 milhões para a construção de creches. O valor é suficiente para erguer apenas 5 unidades.

O próximo presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, recebe o Ministério da Educação com um orçamento 34% menor do que o deixado para Jair Bolsonaro em 2018. São R$ 2,7 bilhões a menos.

Covid-19
A explícita disposição do Governo Bolsonaro em atrasar a vacinação contra a Covid-19 no Brasil, ao lado da omissão em coordenar esforços entre os sistemas estaduais de saúde, educação e assistência social, não aparece no relatório enviado à ONU.

Ao contrário, o texto ressalta que “planos de contingência foram implementados para lidar com as consequências prejudiciais da pandemia de Covid-19”. Na realidade, esses esforços foram feitos largamente pelos estados, mas não foram suficientes para evitar as mortes de mais de 688 mil pessoas desde o início da pandemia até a data desta matéria.

Entre as supostas providências executadas, está “a ampliação do investimento em serviços públicos às mulheres vítimas de violência e suas famílias”. Bolsonaro cortou 90% da verba para enfrentamento à violência contra a mulher.