Para se fazer luta social, há que se discutir projeto econômico, diz Daniel Cara

Entrevista concedida à revista Sinergias ED, ligada à Universidade do Porto

A seguinte entrevista feita por Daniel Cara, professor da FE/USP e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, foi publicada originalmente pelo site do projeto Sinergias ED, do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP) e a Fundação Gonçalo da Silveira (FGS), concedida em 2019 ao pesquisador Rui da Silva, do CEAUP e membro da Rede Lusófona pelo Direito à Educação (ReLus), e presente na última edição da Revista Sinergias de dezembro de 2020.

Rui da Silva (RdS): Daniel, começo por te agradecer a disponibilidade e interesse em colaborares com a Revista Sinergias. Tendo em consideração os processos de formação da democracia brasileira, principalmente o fim da ditadura militar, o que pensas que este processo de democracia pluripartidária do Brasil permitiu atingir?

Daniel Cara (DC): O processo democrático num país como o Brasil - que é um país que tem uma forte cultura de governos autoritários oriundos desde o processo de colonização, passando depois pela única experiência imperial de todo o continente americano, chegando até aos anos de Vargas - que foi um grande presidente  -  e passando posteriormente pela ditadura militar - é um contínuo processo de construção. E uma construção complexa porque no pós-guerra, especialmente no contexto europeu e nos países do Norte, a democracia liberal se alia ao seu sistema económico capitalista mas, para os países do Sul, essa não é uma relação tão clara. Aliás, mesmo para os países do Norte essa junção entre democracia liberal, capitalismo e liberalismo económico encontra-se agora em crise. Na realidade, no caso da América do Sul, a democracia acaba sendo um sistema conflituoso com o sistema económico e no caso brasileiro isso é mais profundo por conta da própria experiência de desenvolvimento económico pautado pela escravidão.

RdS: Qual a relação que vês, então, entre a democracia e a economia?

DC: Os processos democráticos inexoravelmente vão gerar questionamentos sobre a forma como a elite económica se estabelece no poder, e ela se estabelece no poder por meio de uma enorme exploração das pessoas. Então o resultado é que um governo, por exemplo, com muitos defeitos (na minha opinião, com mais qualidades do que defeitos) - como os dois governos do ex-presidente Lula e uma boa parte do primeiro mandato da presidenta Dilma - acaba tensionando o sistema do poder. Aqui está um exemplo, os ricos até ganharam mais como resultado do governo Lula só que não aceitaram o que tiveram que entregar em termos de posições da sociedade, ainda que pouco. O que significa isso? A dificuldade em aceitar o ingresso dos estudantes das escolas públicas e dos negros em universidades públicas federais (que são gratuitas, mas ainda elitizadas; e são as melhores junto com as estaduais de São Paulo). A dificuldade, por exemplo, em aceitar que as empregadas e empregados domésticos, têm direitos, o estabelecimento da bolsa de família... tudo isso se torna um ponto de desentendimento nacional, um ponto de tensionamento do tecido social.

RdS: O que se atingiu com a democracia pluripartidária no Brasil?

DC: Após os dois mandatos do presidente Lula concluímos que é possível dar conta da promessa de universalizar políticas sociais, como o direito à educação, à saúde. E o que representa o governo Bolsonaro? Antes de tudo, mais do que todas as loucuras ultra-reacionárias do governo Bolsonaro, representa um refluxo da Carta Constitucional de 1988, que reconhece direitos - aliás, é uma constituição muito baseada na constituição portuguesa oriunda da revolução dos cravos de 1974. O que está concretamente em causa é que a Democracia brasileira tinha atingido o patamar de promessa e é essa promessa que está sendo agora desconstruída, uma promessa de um país que pode sonhar um dia com uma democracia plena, não só no sentido eleitoral mas também no sentido social.

RdS: Qual o papel dos processos educativos e da sociedade civil nesta transformação política/social ou no possível alcance dessa visão para a mudança do país?

DC: Em primeiro lugar é importante ressaltar que, apesar de os governos Lula e Dilma terem sido os que mais avançaram no direito à educação, esse não foi plenamente cumprido como agenda. Os avanços foram insuficientes perante as necessidades. E porque é que isso ocorre? Esse é um aspecto que eu quero ressaltar muito aqui na nossa conversa. Os governos de Lula e Dilma não avançam mais em educação, saúde, enfim, nos direitos sociais (no caso da nossa constituição são escritos no artigo 6º), porque significam um forte dispêndio de recursos, em outras palavras, investir em direitos sociais significa fazer com que o orçamento público priorize as pessoas e priorize todos os brasileiros. Priorizando todos os brasileiros, obrigatoriamente vai prejudicar a forma como se estabeleceu o sistema financeiro nacional, que é fortemente pautado nos lucros e nos dividendos oriundos da dívida pública. Ou seja, a elite que tem os títulos do estado brasileiro, que são cerca de 200 mil famílias, não querem que sejam investidos recursos orçamentários para os 200 milhões de pessoas que existem no país.

RdS: Mas, então, o que se avançou?

DC: Avançou-se perante o que era possível, o que foi permitido pela elite económica. Só que a sociedade civil fez ir além. Ainda assim, ainda ficamos distantes do que seria necessário. Nesse sentido, o impeachment da Dilma, já representa uma resposta da elite muito objetiva contra os investimentos substantivos em política sociais, representa um freio a um processo que a sociedade civil vinha ganhando. É sempre bom lembrar Rui, que por várias tentativas que tivessem surgido em criar agendas para aumentar o investimento em educação, o governo se colocava contra porque ele sabia o que representava, por exemplo, aprovar 10% do PIB em educação - representava um rompimento com o mercado financeiro. Quando a gente determina que 50% dos recursos do petróleo vão ser investidos em educação pública, priorizando a educação básica, isso representa uma afronta ao sistema financeiro.

RdS: Achas que esse incremento ou essa promoção dessas agendas teve influência do trabalho da sociedade civil e dos movimentos sociais?

DC: O que acontece é que o governo Lula nunca foi um governo de rompimento, ele procurava promover avanços dentro de um jogo dominado pela elite económica. Por isso o governo sempre se posicionava contra essas agendas, mas a sociedade civil obteve enormes conquistas, exemplo são as conquistas da Campanha Nacional pelo Direito da Educação, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB), a política de quotas, a emenda constitucional 59 de 2009 que expandiu a educação obrigatória dos 4 para os 17 anos (o Brasil é o país que tem a maior quantidade de anos em educação obrigatória), o estabelecimento do fim da retirada de recursos da educação (existiu um mecanismo constitucional que retirava 20% dos recursos da áreas sociais, incluindo a educação), a conquista de 50% dos recursos do petróleo do pré-sal e 75% dos recursos do petróleo do pós-sal para a educação, e 25% do pós-sal para a saúde, o Plano Nacional de Educação 2014-2024. Tudo o que conseguimos conquistar foi contra a posição do governo e foi uma posição de enfrentamento à área económica do governo Lula. Se perguntar para o presidente Lula se intimamente concordava conosco ou com a sua área fazendária, ele certamente concordaria connosco, não concordaria com a área económica, no entanto ele sabia que para manter o projeto de poder dele era preciso manter uma boa relação com o sistema financeiro, que é quem domina o capitalismo brasileiro.

RdS: Neste contexto, como fica a sociedade civil?

DC: A sociedade civil enfrentou o sistema financeiro, que tinha posições mais fortalecidas mesmo dentro dos governos Lula e Dilma. A diferença daquele momento para hoje, é que naquele momento existia um espaço da discussão na sociedade e, no momento atual, depois do impeachment, todos os canais de diálogo com o parlamento e com o governo que exerce o poder executivo, foram rompidos. Só a partir da pandemia, diante do desgoverno de Bolsonaro, é que reestabelecemos laços com o poder legislativo federal e voltamos a obter vitórias. Como se rompeu, por exemplo, o espaço de discussão com o legislativo? O processo do impeachment estabeleceu uma nova hegemonia: os parlamentares que votaram favoravelmente ao impeachment, a todas as medidas do governo Temer, e agora aos desmandos do governo Bolsonaro, são parlamentares que representam as elites económicas financeira e do agronegócio, e para fazer com que eles mantivessem o vínculo com essas elites económicas (é preciso não esquecer que na cabeça de um parlamentar o primeiro ponto é o voto, é a sobrevivência dentro do poder, para isso é preciso dinheiro) foi promovida a prisão do ex-presidente Lula. Tirando o ex-presidente Lula do cenário, o maior ator político em termos de voto, o mais popular político brasileiro fora do jogo eleitoral, a disputa fica totalmente aberta, ao ponto de o Brasil acabar elegendo o Presidente mais fascista do mundo. Existem outros líderes que são fascistas, mas nenhum se aproxima de Bolsonaro.

RdS: Todo este processo que descreveste, desta luta política, e as mudanças que têm ocorrido alteraram a colaboração entre os diferentes atores, organizações? Isto mudou a vossa forma de atuação? Ampliou as formas de resistência e colaboração entre várias organizações? Ou fragilizou todo este movimento da sociedade civil em prol do direito à educação?

DC: Embora a historiografia não registe essa questão, o Brasil foi um país sempre marcado pelo conflito. Nós temos conflitos no Brasil desde 1500, desde o período da colónia. A primeira foi a guerra de Iguape, resultado de uma interpretação hispânica equivocada do Tratado de Tordesilhas. Naquele momento, já existia um movimento pequeno de algumas lideranças no Brasil que apontavam para um processo de independência. O Brasil é um país marcado por uma série de manifestações, de revoltas, de tentativas e de perdas de poder. A partir da ditadura militar os processos mais ricos que se desenvolvem no Brasil são os vinculados à teologia da libertação especialmente nas comunidades eclesiais de base que, junto com os estudantes universitários que lutaram contra a ditadura e junto com os sindicalistas que emergiram em São Bernardo do Campo (aliás, esse foi o nascimento do Lula) criou-se uma amálgama de participação social. A partir de 1988, com a nova Constituição, desenvolveu-se no Brasil uma das sociedades civis mais ativas do mundo, mais criativas do mundo e com maior poder no mundo. A sociedade civil no Brasil teve uma enorme participação social e isso gerou uma força da sociedade capaz de pressionar por direitos, estabelecer diálogo com a comunidade internacional e, principalmente, gerar uma sociedade civil capaz de orientar as políticas em conflito ou em colaboração com os governos e o Estado.

RdS: Acreditas, então, que esses movimentos sociais são herdeiros da luta contra a ditadura?

DC: É sempre bom lembrar, Rui, que a luta contra a ditadura foi, inicialmente, uma luta de setores da classe média e da elite, porque eram universitários e se a universidade é ainda hoje elitista no Brasil imagina na década de 60 e 70! Só que esse elitismo foi quebrado, em termos de projetos de poder da esquerda, pelas comunidades eclesiais de base da igreja católica, que aí sim eram totalmente populares, e pelo novo sindicalismo estabelecido pelo ex-presidente Lula que na época era um líder sindical, fundador da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Partido dos Trabalhadores (PT).

Para a elite política brasileira da esquerda, a Revolução dos Cravos sempre foi uma referência estrutural e isso cria uma ideia de que o Brasil precisava de estabelecer direitos. A Campanha Nacional pelo Direito da Educação é filha desse processo histórico.

RdS: E qual foi o ponto de viragem?

DC: Na década de 90, quando se estabelece uma grande sociedade civil progressista no Brasil, uma sociedade civil engajada e dedicada à expansão dos direitos, os empresários começam a construir organizações empresariais, numa reação admirável de querer contribuir para esse processo de luta e consolidação por direitos, de certa maneira marcados pela socialdemocracia que emerge do pós-guerra no mundo. Mas, em parte, eram também estratégias para disputar o poder, especialmente na educação, área em que nunca os empresários tiveram uma ação positiva. O que acontece é que esse hibridismo dos empresários, esse falso compromisso social, dura até 2012. Em 2012 a ex-presidenta Dilma decidiu romper as suas alianças empresariais com o mercado financeiro. Ela faz uma drástica redução dos juros e de todos os preços estabelecidos pelo Governo Federal - o governo é o maior precificador da economia brasileira, como é em qualquer lugar do mundo. Ela reduziu especificamente a tarifa de energia e reduziu os juros exorbitantes.

RdS: Qual o seu objetivo?

DC: O objetivo dela era o de retomar a industrialização, só que esqueceu que no Brasil, no mundo ocidental, desde o ingresso da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), a produção industrial foi deslocada drasticamente para o mundo oriental. E competir com os chineses é algo completamente impossível hoje. Os empresários brasileiros, mesmo os industriais, colocaram todas as suas posições no mercado financeiro. Então, não adiantava Dilma incentivar a industrialização, pois ela tinha que ter consciência que o dono da indústria é o mesmo dono dos bancos empresariais ou é uma pessoa que tem muito dinheiro no mercado financeiro. Ela fez o certo, mas da forma errada, sem lastro de poder.

RdS: Quais as consequências dessa atuação?

DC: O resultado disso é que houve um claro rompimento com a presidenta Dilma. Os empresários tomam uma decisão, que é uma decisão bastante corajosa, e ao mesmo tempo uma decisão extremamente temerária em termos de coesão social e de construção nacional - produzir uma sociedade brasileira mais desigual do que já é. Os empresários tomam a coragem de querer fazer parte do jogo e aí, tanto na educação como em todas as outras áreas em que atuam, começaram a bloquear a luta pelos direitos, negando mais recursos para as áreas sociais. O resultado disso é que agora vivemos numa situação de nós contra eles, sendo que, como a cooperação internacional saiu do Brasil, organizações como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o Movimento pelos Trabalhadores Rurais sem Terra, o Movimento Dos Trabalhadores Urbanos sem Teto, enfim, todo o campo progressista da área social da sociedade civil e todo o campo que luta pelos direitos está em risco de sobrevivência. E, apesar de este ser um movimento que estou comentando sobre o Brasil, poderia falar sobre o mundo porque as iniciativas de privatização de educação na África, por exemplo, também denotam uma estratégia de organizações empresariais que acabam procurando fazer advocacia, beneficiando assim, de alguma forma, os seus negócios.

RdS: De forma a sistematizar esta perspectiva histórica, e contextualizando o caso do Brasil e o da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que aprendizagens achas que se podem tirar de todo este processo que foste descrevendo?

DC: A principal aprendizagem é que para se fazer luta social há que ter a capacidade de discutir o projeto económico. Acredito que a economia deve estar ao serviço das pessoas e não são as pessoas que têm que estar ao serviço da economia. É claro que isso pode parecer uma utopia, eu posso ser considerado uma pessoa que tenta colocar em outras palavras um projeto socialista, mas isso para mim não é nenhum problema. O que eu estou querendo dizer é que a gente precisa de ter a capacidade de conseguir mostrar para a sociedade que sem política económica não é possível garantir direitos sociais, e para isso é preciso que continue existindo a democracia e que ela tenha algum nível de vigor. Ou seja, acredito que a maior parte da aprendizagem é que a gente precisa mergulhar na questão da política económica ser pautada na justiça social efetiva e no combate às desigualdades e não nas políticas que estão sendo implementadas por vários países do mundo de produzir uma desigualdade com afeto, ou seja, tentam diminuir as desigualdades, mas nunca a ponto de fazer de facto com que exista a justiça social. A segunda aprendizagem, oriunda dessa questão económica, é que não dá para discutir a educação sem vincular o debate educacional ao debate central da ciência, tecnologia e inovação. E o terceiro ponto é que precisamos de estabelecer projetos de poder, com base nessa construção programática e empírica, ou seja, com toda a experiência e com toda a história que nós construímos ao longo dos anos.

RdS: E nas mais recentes mudanças do contexto brasileiro, como vês a resposta da sociedade civil?

DC: A sociedade civil na América do Sul, ficou em situação de desespero, especialmente no Brasil, porque de repente se surpreendeu com a violência da emergência fascista no Brasil. A sociedade civil se encontrou assustada porque, de repente, o espaço que ela encontrava para discutir em termos democráticos, em mesas de negociação, deixa de existir. Ela se vê surpreendida porque, em muitos níveis, é ingénua. Enquanto ela estava pensando no mundo sob um conjunto de regras que mudaram - e ela não percebeu que mudaram - outros grupos estavam estabelecendo outros modelos: os ultraliberais e os empresários sonhavam em poder debelar o estado democrático de direito, no âmbito dos direitos sociais. Os ultrarreacionários elaboravam um plano contra direitos civis e políticos. Então, acredito que esse momento, que é um momento de refluxo da cidadania, precisa ser encarado também como um problema nosso. Temos de ter coragem de assumir o problema - não tivemos capacidade de perceber as mudanças históricas e não estávamos preparados para lidar com a violência.

RdS: Como consideras que se pode responder a esta violência?

DC: Numa sociedade como a brasileira, quem não está preparado para lidar com a violência, não está preparado para mudar o país. Eu não estou a dizer que a resposta tem que ser violenta, mas a gente tem que ter a capacidade de frear, de responder democraticamente à violência, e é isso que não estamos conseguindo. Mas a verdade é que o sistema já está mudando também. Mais pelos erros do Bolsonaro do que pelos nossos acertos, a economia está estagnada, existe muito desagrado em relação ao governo Bolsonaro, e aí eu acho que a gente vai poder tentar reconstruir um campo democrático e progressista. Mas uma reconstrução completa precisa de passar por estes três pontos: i) discussão do projeto económico; ii) vinculação do debate dos direitos sociais, especialmente do direito à educação, à ciência, tecnologia e inovação – é preciso que o Brasil vincule a educação básica com a educação superior e a educação superior com a pesquisa e o desenvolvimento; iii) e necessidade de aprender a fazer disputas de poder com ética, com projeto, mas sabendo evitar a ingenuidade e o espontaneísmo tolo.

RdS: E crês que, através do alcance desses três pressupostos e da luta dentro das regras, a sociedade civil brasileira vai conseguir, ou está a conseguir a efetivar mudanças?

DC: Se fosse um jogo de tabuleiro a gente voltou praticamente todas as casas até à década de 1980 mais ou menos, e isso precisa de ficar claro. Nós podemos ter uma vitória eleitoral caso seja permitido uma candidatura ao presidente Lula, em 2022. Se ele for candidato é possível - não é certeza mas é muito possível - que a esquerda ganhe no Brasil. Mas, mesmo assim, ele não vai fazer um governo de esquerda, assim como o Fernandez na Argentina não vai fazer um governo de esquerda também. Ele vai fazer um governo aquém do Kirchnerismo. Por isso é que eu falei de pesquisa e desenvolvimento, é preciso que a gente compreenda o que é o cenário económico do mundo. Desde o ingresso da China na Organização Mundial do Comércio e com o crescimento vertiginoso da Índia em termos de industrialização, o centro industrial do mundo é na Ásia (retirando o caso de alguns poucos países como os Estados Unidos, Alemanha e o Japão, ainda que perante uma recessão já de décadas). Não existe lastro económico para se conseguir remodelar um sistema nacional de industrialização. O Japão, os Estados Unidos e a Alemanha são países extremamente complexos em termos económicos pois têm uma produção muito ancorada em patentes e direitos autorais, mas também isto está em risco. A China já está a um passo de romper essa fronteira de patentes, ela está a um passo de ser uma grande produtora de patentes - é um país com alto número de cientistas por número de habitantes. Precisamos de ter consciência de que não basta jogar o mesmo jogo das décadas entre 1920 e 1970 o qual, no nosso caso, era um jogo de substituição de importações e competição em alguns setores. A gente vai ter que desenvolver linhas de industrialização, linhas de pesquisa e desenvolvimento que façam com que o Brasil consiga encontrar produtos e consiga estabelecer serviços com grande capacidade de empregabilidade, com boa acumulação de capital para fazer frente ao mundo. É diferente do caso português porque Portugal, na minha visão, está numa posição melhor estabelecida no cenário internacional tendo conseguido encontrar um ponto de equilíbrio económico melhor do que nós. Portugal hoje é uma economia sistémica na União Europeia, há alguns anos não era. O Brasil não tem parceiros comerciais que subsidiem a economia, então ele precisa de ser uma economia sistémica no mundo com um forte desafio para a inclusão social. A situação brasileira, de facto, não é fácil, mas precisa de ser encarada, precisa ser enfrentada. Precisamos de recuperar essa distância.

RdS: E a sociedade civil?

DC: Acho que o mundo vai passar por uma grande hora da verdade e, nessa hora da verdade, a sociedade civil não vai poder ficar só debatendo direitos - ainda que a reivindicação dos direitos seja a correta mola propulsora da sociedade civil. A sociedade civil vai precisar debater economia, disputar o projeto económico para financiar adequadamente os direitos sociais, garantir qualidade de vida para o povo. No caso brasileiro isso significa também respeitar a sustentabilidade e a Amazônia. E vai precisar encarar que o jogo político vai ser extremamente brutal no cenário internacional nos próximos anos, tanto quanto já é no próprio Brasil.